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Sancionada lei que trata da autorregularização incentivada com a Receita Federal

Por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a seguinte tese: “O deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual”.

Por: KBL
07/12/2023

Em seu voto, o ministro relator Edson Fachin indicou que as transferências de mercadoria poderiam ser consideradas como atos internos da pessoa jurídica que, embora inerentes ao exercício da atividade econômica, são alheios ao verdadeiro significado constitucional de “circulação” — conceito já construído desde o ICM, sendo hoje incutido no arcabouço teórico do ICMS por meio do artigo 155, inciso II, da Constituição Federal. Assim, transferências seriam consideradas como um “nada” jurídico ou “não-operações” e, desse modo, não se sujeitariam à incidência do ICMS.

Embora esse posicionamento não seja novo — tendo o STF já se manifestado nesse sentido na Representação (Rp) nº 1.181/PA [1] e no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 1.255.885 (Tema 1.099 [2]) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editado a Súmula 166 [3] — a questão ainda não havia sido objeto de análise em sede de controle de constitucionalidade concentrado, o que implica efeitos que alcançam todos os contribuintes e são vinculantes à Administração Pública.

Em razão dessa ausência de vinculação geral da Administração Pública à jurisprudência reiterada das Cortes, as Unidades Federativas (UFs) optaram por exigir o tributo que entendiam como devido nessas remessas, o que, por sua vez, impôs aos contribuintes decidirem quanto à conveniência de recorrer ao Poder Judiciário com esta demanda.

Dessa forma, embora não seja possível dizer que houve inovação no entendimento de mérito consignado no julgamento da ADC 49, dada a ausência de uniformidade do cenário jurídico enfrentado pelos contribuintes, e até mesmo a resistência das UFs em reconhecer a impossibilidade de cobrança do ICMS nessas remessas, se fez necessário que maiores detalhes fossem fornecidos pelo STF acerca dos desdobramentos decorrentes da aplicação da não tributação das transferências pelo ICMS.

Assim, por meio do julgamento dos correspondentes Embargos de Declaração (EDs), estabeleceu-se que:

1) a tese fixada, citada acima, terá eficácia pró-futuro – a partir do exercício financeiro de 2024 — ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito;

2) a transferência não é considerada como uma não incidência ou isenção, sendo assegurado aos contribuintes o direito à manutenção do crédito das operações anteriores; e

3) as UFs disciplinarão a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular até o início da produção de efeitos do julgado — caso assim não o façam, a manutenção e transferência de créditos restará automaticamente reconhecida.

Ainda, sobre a questão dos créditos — um dos pontos mais sensíveis aos contribuintes — há certa divergência entre os ministros quanto a qual seria o veículo normativo adequado para disciplinar a matéria.

Da leitura do voto proferido pelo ministro Fachin, Relator da Ação, tem-se que a disciplina a ser proferida decorrerá da composição das UFs perante “o Congresso Nacional e o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz)”. Assim, dá-se a entender que a disciplina poderia se dar alternativa ou cumulativamente por meio de composição entre as UFs no Poder Legislativo e/ou no Poder Executivo.

Já o ministro Barroso, em seu voto, entendeu que a definição dos procedimentos para a transferência de créditos pelas UFs deveria se dar, necessariamente, por meio da adaptação de suas legislações internas — a despeito das deliberações a serem realizadas no âmbito do Confaz.

O ministro Dias Toffoli, por sua vez, sustentou que apenas Lei Complementar poderia sanear o vácuo legislativo identificado, uma vez que o regime de compensação, assim como a solução de conflitos de competência, são matérias de sua competência exclusiva. Assim, sem prejuízo à normativas complementares posteriormente editadas pelas UFs e pelo Confaz a base da disciplina quanto à transferência dos créditos decorrentes dessas remessas deve ser editada pelo Congresso Nacional, não sendo outros veículos normativos aptos a suprir essa necessidade constitucionalmente estabelecida [4].

De todo modo, com a aproximação do termo estipulado para o início da produção de efeitos da decisão de mérito da ADC 49 e a ausência de articulação significativa no âmbito do Poder Legislativo, os Secretários de Fazenda buscaram estabelecer procedimentos para a transferência de créditos no âmbito do Confaz — ao menos em remessas interestaduais — por meio do Convênio ICMS nº 174, de 2023 (Convênio ICMS 174/23).

Note-se que o Convênio ICMS 174/23 buscou manter o modus operandi atual, determinando que os créditos devem obrigatoriamente ser transferidos a cada remessa por meio do registro a débito de uma Nota Fiscal de Transferência de Créditos, na qual o montante a ser transferido será indicado no campo destinado ao destaque do imposto.

Como se pode perceber, no entanto, o assunto é extremamente controverso — não sendo unanimidade nem mesmo entre os Secretários da Fazenda quando de sua publicação.

Poucos dias após a publicação de referido Convênio ICMS 174/23, foi editado pelo Estado do Rio de Janeiro o Decreto nº 48.799, de 2023 (Decreto 48.799/23), que indicou expressamente a não ratificação das suas previsões [5].

Destaca-se que dentre as razões indicadas na exposição de motivos do Decreto 48.799/23 para a não incorporação do Convênio ICMS 174/23 estão a deferência ao entendimento do ministro Dias Toffoli que determina a necessidade de edição de Lei Complementar para regular a matéria, bem como a impossibilidade de que a transferência dos créditos seja tratada como um dever, visto que é um direito dos contribuintes.

Em sequência ao Decreto 48.799/23, foi editado na última sexta-feira (17/11/2023) o Ato Declaratório Confaz nº 44, 2023 (AD 44/23), oficializando a rejeição do Convênio ICMS 174/23.

Em vista da referida rejeição, contribuintes e Administração Pública retornam à estaca zero, a menos de dois meses do início dos efeitos da ADC 49.

Nesse contexto, multiplicam-se os questionamentos dos contribuintes quanto à definição de um cenário normativo prospectivo: o Congresso Nacional irá se mobilizar a tempo de editar as diretrizes necessárias por meio de Lei Complementar, como defendido pelo ministro Dias Toffoli e pela exposição de motivos apresentada pelo Estado do Rio de Janeiro? Haverá preservação da facultatividade da transferência de créditos pelos contribuintes? Em caso positivo, as UFs poderão impor limites ao uso de tal faculdade? Será admitido o planejamento tributário envolvendo créditos decorrente de transferência ou esses necessariamente acompanharão as mercadorias remetidas? Será admitida a rejeição dos créditos pela UF de destino caso esses componham montante superior à alíquota interestadual aplicável?

No momento, não há respostas para as perguntas acima. Em verdade, não há previsibilidade se essas ao menos serão respondidas dentro do termo estipulado pelo STF no julgamento dos EDs apresentados na ADC 49. Com a reforma tributária novamente em trâmite junto à Câmara dos Deputados, é incerto se há interesse (e capital político) para aprovação de qualquer medida nesse sentido antes do encerramento do presente exercício.

Caso não haja a edição das correspondentes normativas até o início do exercício do novo ano-calendário, nos termos do voto ministro relator, as transferências dos créditos estarão automaticamente asseguradas — sem maiores considerações sobre os procedimentos a serem observados para tanto. Trata-se de ponto extremamente importante porque, em um cenário em que não existe uma previsão normativa nacional regulando esse procedimento (a despeito de sua aparente possibilidade, nos termos do voto do ministro Edson Fachin), existe o risco real de retornarmos às discussões de glosa de crédito e créditos fiscais.

Após décadas de amadurecimento do presente tema, essa parece ter chegado a um ápice de instabilidade. Porém, considerando o histórico de tal discussão, a despeito de entendermos que a rejeição do Convênio ICMS 174/23 deixou clara a posição do estado do Rio de Janeiro para pavimentação das diretrizes solicitadas pelo STF para transferência de créditos de ICMS, nenhuma opção pode ser descartada, de modo que os contribuintes devem permanecer atentos à edição de quaisquer atos normativos — seja pelo Congresso, seja pelas UFs, seja novamente pelo Confaz — buscando regular a matéria. Todas as cartas permanecem na mesa até 31/12/2023.

Fonte: Portal Consultor Jurídico 


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